quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Pedro Miguel


WELCOME MY SON TO THE MACHINE
por Pedro Miguel

As visitas entraram pela casa adentro sem se fazerem anunciar. Era uma vivenda respeitável, burguesa, enorme, com um hall de entrada do tamanho de um T3 como aqueles que há no bairro Marais cá em Paris. A governanta estava de folga, um direito relativamente virgem naquela mansão, mesmo para a gerente das outras criadas que tinha educado os filhos dos senhores como se fossem os seus, e se calhar, um ou dois, a julgar pelo atrevimento dos seus olhos claros, até eram.
A modernice continuava com o jardineiro também ausente e com licença de paternidade, fruto dos encontros outrora furtivos com a florista mais próxima, entre girassóis, amores-perfeitos, malmequeres e carrinhos de mão, o que lhe custava de quando em vez umas rosas semi-murchas bem na entrada principal do casarão, e a devida reprimenda por parte da já citada governadora ou lá o que era.
Nem de propósito: o motorista tinha levado os carros à inspecção (apesar de ser fim de semana e de ninguém dar por isso) e os caseiros que viviam no anexo, já tinham morrido sem que ninguém desse por nada.
Era Sábado, Dia Internacional do Refugiado, num fim de tarde quente em Junho, na véspera de começar oficialmente o Verão, que é como quem diz – e assim é que está correcto – a poucas horas do solstício de Verão e da entrada do Sol no signo de Caranguejo.
O pai estava na biblioteca de tronco nu, na desbunda, a ler ficção americana, não tinha dado por isso, mas nem tinha sequer almoçado. A mãe, num clássico fora de moda, de rolos na cabeça e de robe, andava pela casa apressadamente, para a tinta do cabelo secar mais depressa devido à aparente corrente de ar provocada por ela.
A filha adolescente estava no quarto com os headphones metidos nas orelhas, a ouvir a banda de garagem do namorado e não deu por nada. Podiam derrubar paredes, matar a família inteira, que não daria por isso… bons headphones de marca alemã que isolavam tudo com o único inconveniente de fazerem suar os ouvidos com a sua esponja mole e confortável.
O pai lembrou-se de ir comer qualquer coisa, a mãe passava por ali a alta velocidade e a filha tinha decidido ir dar um mergulho na piscina.
Encontraram-se todos no hall de entrada.
As visitas já lá estavam.
O embaraço foi grande.
O riso nervoso da madame visitante não ajudou e ainda por cima falava mal por causa de uma trombose ocorrida há uns anos e agora usava um aparelho nos dentes porque se lhe tinha deslocado um maxilar quando caiu na banheira. Ninguém percebeu a historia nem o facto de ela se queixar que aquilo estava muito apertado e lhe causava uma sensação na espinha muito irritante que ela própria não tinha talento para explicar.
O olhar do gentleman visitante para o interior do robe um pouco decotado da dona da casa caiu mal em toda a comitiva e a culpa foi do raio da criancinha de olhos claros que gosta de abrir a porta seja a quem for quando tocam à campainha.

Este conto faz parte do número 31 da Revista 365.

Pedro Miguel nasceu em Viseu, há 33 anos. Vive em Leiria, claro. Escreve no projecto É sexta-feira, foge comigo e passa música sob o nome dj Schmeichael.

A ilustração deste conto é de Elif Karakoç.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Miguel Marques

O FILHO E A GUITARRA
por Miguel Marques

A mãe diz que o tio é maluco da cabeça só porque se mete a fazer caretas quando fica a tomar conta de mim. A mãe também diz que o tio é maluco doutros sítios, que não é só da cabeça, mas quando ele começa a fazer caretas ela cala-se e não diz nada e fica a olhar para ele como quando olha para mim se calho portar-me mal ou deixo cair alguma coisa no chão. O tio é assim muito alto e gorducho e tem uma cara esquisita, muito vermelha, muito redonda, muito gorducha, e quando se põe a fazer caretas fica igualzinho a um sapo cheio de ar e começa a fazer barulhos com a boca como se estivesse a lavar os dentes antes de ir para a cama.

Este conto continua na edição impressa do número 31 da Revista 365, ou pode ser descarregado em pdf a partir do nosso site.

Miguel Marques nasceu em Lisboa em 1978. Formado em Psicologia, tem colaborado amiúde na 365, e tem trabalhos publicados na colectânea «Jovens Escritores» (edição 101 Noites).

A ilustração deste conto é de Micael Póvoa.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Camilo Castelo Branco

MANIA E HIPOCONDRIA
por Camilo Castelo Branco

Certo maníaco imaginava que tinha morrido, e rogava aos parente e amigos que o enterrassem, porque o seu corpo começava a apodrecer. Três vezes, dentro de um ano, o atacou semelhante mania. Amortalharam-no e fingiram que o levavam ao cemitério; porém, no caminho, estavam uns homens pactuados com os parentes à espera do saimento; e, quando a tumba ia passando, começaram a dizer em voz alta:
– Ora, graças a Deus, que morreu finalmente aquele velhaco, aquele biltre, aquele perversíssimo celerado!
O maníaco, ouvindo os insultos, irou-se grandemente, e respondeu:
– Canalhões! se eu estivesse vivo, castigar-vos-ia a bengaladas, para vos ensinar a não ter má-língua; infelizmente estou morto; e os mortos não se vingam.

Este conto continua na edição impressa do número 31 da Revista 365, ou pode ser descarregado em pdf a partir do nosso site.

Camilo Castelo Branco viveu entre 1825 e 1890. Tem uma obra vastíssima e é um dos mais importantes escritores da língua portuguesa. Já anteriormente havíamos publicado nesta revista o texto «Maria! Não Me Mates, Que Sou Tua Mãe!».

A ilustração deste conto é de Alex Gozblau.

domingo, 3 de janeiro de 2010

Madalena Silva

A VIÚVA
por Madalena Silva

Dona Cândida era ainda uma mulher interessante quando enviuvou. Os belos olhos verdes amendoados sempre haviam sido o seu melhor atributo e nem os rios de lágrimas amargas que a partida do falecido desencadeara tinham conseguido manchar a limpidez do verde e o amendoado das formas. (...)

Este conto continua na edição impressa do número 31 da Revista 365.

Madalena Silva nasceu em 1956, na Parede, e embora pudesse ter sido uma menina da Linha preferiu desalinhar e foi viver para o deserto a sul do Tejo. Por necessidade, enveredou pela notável carreira de funcionária pública. Por gosto, e para respirar, encenou peças, pinta e escreve coisas. Aos 40 anos licenciou-se em Línguas e Literaturas Modernas; aos 50 foi fazer um mestrado em Edição de Texto; quando fizer 60 espera receber o Pulitzer – dispensa o Nobel. Defende que nem todos os políticos são trafulhas e acredita que ainda é possível mudar o mundo. Até hoje, nunca tinha publicado nada. A partir de hoje pretende nunca mais parar. É autora do blogue A Gaveta da Escrita.

A ilustração deste conto é de Katherina Velasquez.