segunda-feira, 20 de junho de 2011

Andreia Moreira


O TRAPEZISTA
por Andreia Moreira

Aquele animal monstruoso e maléfico cheio de coisas impossíveis dentro de si estava às portas da cidade, como que esperando-me. Tive medo, porque sabia que me queria pelo tanto que o queria eu a ele. Não podia evitar. Os meus passos atraiçoaram a minha razão e levaram-me até à entrada de tudo. Não percebia nada do que me acontecia. Nada. Todo o fedor e estruturas em ferro, portas e cortinas. Fechadas. Vozes do silêncio sufocando-me até não poder respirar, como um arame farpado cravando toda a sua vontade naquela curiosidade irreprimível que eu sentia. Curiosidade. Amor a um perigo que eu pressentia no tango que me saía junto com o suor que corria pelas minhas costas abaixo.
Uma voz cavernosa quebrou aquele silêncio de vidro e acabou de apertar o arame farpado que tinha agora ao redor das minhas mãos. Impotentes. Caídas ao lado das pernas.
– Se saíste da segura luz do dia para chegar até aqui, é porque tens valor. Então não se explica tanto medo. Se sentes que és daqui, sabes que és daqui. És um de nós. Está atrás daquela porta a tua vida. Vai. És muito jovem. Tens muito que trabalhar, expulsar, pecar para chegar a ser como eu.

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Ele foi um trapezista excepcional, diabolicamente maravilhoso. A maravilha invadia-o. Era sua filha como é o sonho filho da morte. Entende? As pessoas cobriam-se num suspiro profundo, imenso, sufocado, retido nas milésimas de segundo intermináveis com que atravessava o arame por cima das suas cabeças. Em que dançava naquele fio e nos espaços que cabiam entre ele e o impalpável. Imaginavam que eram ele. Ele tinha esse poder. E, no entanto, ninguém diria que era assim poderoso se o visse fora da carpa em qualquer momento do dia. Com os raios do sol se apagavam os seus, ou os escondia do afã da quotidianidade em apodrecer o riso do mal. Sim, sim. Não me equivoco. O riso do mal é a voz dos artistas. Dos sublimes. Dos imperecíveis. Como o bolor num pedaço de pão! A benfazeja quotidianidade não é raiz de nada. Não tem a febre da coragem. Da coragem de enfrentar a morte, procurando-a em cada espectáculo. Como ele fazia. Como fazem todos os grandes, poetas e loucos. Procuram a morte, acossam-na até que ela não possa mais, não se lhes resista mais e caia perante eles. É isso que procuram. Ou não sabe ler o que nos momentos em que se permitem um sorriso lhes aparece entre as rugas mais sinceras que lhes guardam a alma? Estou em crer que, mesmo quando era um zé-ninguém fantasmeando pelas ruas, se lho podia ver no levantar e pousar dos calcanhares no meio do mijo dos cães que farejam o lixo das cidades e dos campos onde ia procurar a lua. Mas quando subia às alturas, transformava-se. Era a magia no seu estado puro. Não tinha nem queria asas para voar. No dia em que se despenhasse penhasco abaixo seria para vencer. Seria chegado o dia da sua morte, da sua grande vitória, ansiada ao longo de tantos anos de trabalho. Morreu-nos. Comemorávamos o dia em que tinha chegado ao circo pela primeira vez. Em que era ainda e tão só um fedelho à procura do medo para lhe fazer frente. Conheceu o seu mestre nesse dia. Superou-o ontem.

Este conto faz parte do número 33 da Revista 365.

Andreia Moreira vive em Barcelona, onde está a terminar um mestrado em Educação Interdisciplinar das Artes.

A ilustração deste conto é de Anna Erre.

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