terça-feira, 28 de junho de 2011

Fernando Ribeiro


LÚCIFER E LILITH
por Fernando Ribeiro

Viram-se pela primeira vez de dia, na manhã da praia. Por entre as famílias felizes, redondas das merendas. À vista das crianças que pingavam sal na água da pele. À sombra das rochas de argila entranhada, despenhando-se, cinzenta, nas areias sedentas.
Olharam-se encandeados do zénite do Sol. As famílias dormiam, ruminantes. As crianças desapareciam no mar entre gritos e surdinas. As rochas mutilavam-se de ervas secas, cardos e insectos chocando na confusão das vidas intensas.
À tarde não foram vistos por ninguém.
De noite, o mar chegou-se à areia para acasalarem. Aninhada pelo vulto das rochas silenciosas, Lilith em quatro patas, no chão, oferecendo o seu dorso esguio e vibrante ao rapaz, que se suicidava dos céus com movimentos de rapina. A sua lança de carne penetrava o sorriso húmido, ao fundo das costas tatuadas de cicatrizes da rapariga. Vezes e vezes sem fim, com crueldade e com eternidade.
Subiram à tenda, de mão dada, destruídos do amor. Caminharam pelo trilho de segredos da terra, pisando o céu duro das outras vidas e dramas que se desenrolavam nos magmas profundos e quentes. Chegaram à tenda, pelo portão dos infernos, sempre aberto para a sua passagem. Embalados no espaço apertado, adormeceram ouvindo o rugido do mar seduzindo a terra, arrastando-a para dentro do seu corpo de profundidades. Fechando-a no prazer uterino das suas grossas correntes de verde.
Dormiram como anjos caídos.
Não deram pelo Sol que queimou, nessa manhã, toda a Terra.
Pela chuva ácida que se lhe seguiu, desmascarando o horror de veias, ossos e pústulas. Pelo vento que tombou edifícios, brincando com eles no seu buxo.
Pelo fogo que ardeu na escuridão dos céus, guiando os últimos dos seres até ao abismo que ria, bocarra aberta, garganta seca, grito de dor.
Levantaram-se para comer algo. Deram as mãos e seguiram alheios aos corpos paralisados em pó negro. Pessoas que saíam das tendas. Pessoas sentadas à mesa para o pequeno-almoço. Crianças a brincarem, silenciosas, nas mantas estendidas. Árvores calcinadas, a desfazerem-se em papelinhos pretos. Na esplanada com vista para o esqueleto do mar recuado no horizonte, mais pessoas em pele derretida como cera, pegando nos copos de sumo natural de laranja, nas chávenas de cafés cheios, mastigando vazios, olhos brancos nas órbitas olhando os dedos agarrados às bordas dos livros. Mão na mão. Boca na boca. Esgares e espantos de que como afinal tudo foi tão rápido.
Desceram à praia em jejum. No meio das famílias caladas no cedo da manhã. Das carnes derramadas pelas areias pretas de sangue. Contornando as crianças brancas de ossos à mostra por entre as peles descosidas. Beijaram-se uma primeira vez, com as línguas tocando uma na outra. Untaram-se das argilas derretidas e Lilith deitou-se de costas na areia, afastando os sangues para descobrir o ouro das cores primevas do solo.
Lúcifer desceu sobre ela, com carinhos únicos. Durante dias fizeram amor. Não pararam para descansar. Não pararam para pensar. Para observar as ruínas da Terra, o esqueleto seco do mar, a vegetação moribunda que descia as rochas, fugindo. Saciavam a sua sede na saliva do outro. A sua fome na carne do outro. Todos eles só um.
E ao sétimo mês nasceu Caim num corpo de lobo e sua irmã gémea Maria no corpo de uma serpente, fundando para todo o sempre a maldição de um mundo novo.

Este conto faz parte do número 33 da Revista 365, e foi ilustrado por Alex Gozblau.

Fernando Ribeiro é vocalista e letrista e alma da banda Moonspell e autor dos livros «As Feridas Essenciais» (Quasi, 2004), «Como Escavar um Abismo» (Quasi, 2005) , «Diálogo de Vultos» (Quasi, 2007) e «Senhora Vingança» (Gailivro, 2011).


quarta-feira, 22 de junho de 2011

Fernando Alvim


PARA O MEU AMOR
por Fernando Alvim

Meu amor, escrevo-te como te havia prometido para dizer no fundo o que já sabes: que gosto de ti. E não é de agora. Eu gosto de ti desde os tempos do antigamente em que as mulheres usavam sombrinhas na rua, para que o sol não as incomodasse. Eu gosto de ti desde aí meu amor, e sei bem que nunca o terás notado, porque quando te aproximas todo eu estremeço, como quando o vizinho de cima fecha a porta de casa com muita força e todo o prédio ouve. Meu amor, tu não precisas de qualquer porta para te fazeres notar, porque a tua simples passagem, a tua presença, é superior a mil portas a fecharem-se com estrondo.
Meu amor, eu queria ter-te sempre ao pé de mim e ensinar-te palavras em português que eu sei que terás sempre dificuldade em dizer. Por exemplo: amo-te. As pessoas têm muita dificuldade em dizer isto em Portugal mas eu vou-te ensinar a dizê-lo na perfeição. De tal modo, que quero que olhes para mim e o digas todos os dias. Até ser perfeito. Até saber tão bem como sabem os bons-dias quando ditos com vontade. A grande maioria das pessoas quando diz os bons-dias não o deseja de verdade. Deseja-se um bom dia como poderia perguntar-se se tem rebuçados para a tosse. E com o amo-te por vezes também é assim. As pessoas acham giro porque ouvem nas telenovelas a dizerem-no com tal destreza, que pensam que na vida real também é assim, que quando o dizemos também se ouve uma música de fundo que sobe à medida que nos beijamos.
E agora que penso nisto, pergunto: Como se dirá amo-te em finlandês? Como se dirá amo-te na Finlândia? Porque é que só aí existem saunas mistas? Gostava tanto que me ensinasses coisas sobre a Finlândia que até podíamos fazer uma espécie de acordo. Eu ensino-te a dizer amo-te em português e tu em finlandês. E, em nossa casa, eu só falo em finlandês com os miúdos e tu em português. E é nesta universalidade que celebraremos o nosso amor, hoje Helsínquia, amanhã Lisboa, aqui Cavaco Silva, ali Tarja Halonen, na Finlândia os Him, aqui os Delfins, em Suomi 5 milhões, em Portugal 10.
Mas não seremos mais dois, meu amor. Seremos 5, seremos 10 milhões, seremos Portugal e Finlândia, o mundo inteiro se quiseres, desde que saibamos dizer amo-te na minha, na tua língua, em todas as línguas, como se de cada vez que o fizéssemos, fosse tal a intensidade, que o mundo inteiro nos celebrasse. E o mundo, é esse que vês daí meu amor. Está inteirinho, à nossa espera.

Este conto faz parte do número 33 da Revista 365, e foi ilustrado por Alex Gozblau.

Fernando Alvim é autor de «50 Anos de Carreira» (A Esfera dos Livros, 2008), «Não atires Pedras a Estranhos Porque Pode Ser o Teu Pai» (Cego, Surdo & Mudo, 2010) e «No Dia em que Fugimos Tu Não Estavas em Casa» (Quasi, 2003; Cego Surdo & Mudo 2011).

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Andreia Moreira


O TRAPEZISTA
por Andreia Moreira

Aquele animal monstruoso e maléfico cheio de coisas impossíveis dentro de si estava às portas da cidade, como que esperando-me. Tive medo, porque sabia que me queria pelo tanto que o queria eu a ele. Não podia evitar. Os meus passos atraiçoaram a minha razão e levaram-me até à entrada de tudo. Não percebia nada do que me acontecia. Nada. Todo o fedor e estruturas em ferro, portas e cortinas. Fechadas. Vozes do silêncio sufocando-me até não poder respirar, como um arame farpado cravando toda a sua vontade naquela curiosidade irreprimível que eu sentia. Curiosidade. Amor a um perigo que eu pressentia no tango que me saía junto com o suor que corria pelas minhas costas abaixo.
Uma voz cavernosa quebrou aquele silêncio de vidro e acabou de apertar o arame farpado que tinha agora ao redor das minhas mãos. Impotentes. Caídas ao lado das pernas.
– Se saíste da segura luz do dia para chegar até aqui, é porque tens valor. Então não se explica tanto medo. Se sentes que és daqui, sabes que és daqui. És um de nós. Está atrás daquela porta a tua vida. Vai. És muito jovem. Tens muito que trabalhar, expulsar, pecar para chegar a ser como eu.

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Ele foi um trapezista excepcional, diabolicamente maravilhoso. A maravilha invadia-o. Era sua filha como é o sonho filho da morte. Entende? As pessoas cobriam-se num suspiro profundo, imenso, sufocado, retido nas milésimas de segundo intermináveis com que atravessava o arame por cima das suas cabeças. Em que dançava naquele fio e nos espaços que cabiam entre ele e o impalpável. Imaginavam que eram ele. Ele tinha esse poder. E, no entanto, ninguém diria que era assim poderoso se o visse fora da carpa em qualquer momento do dia. Com os raios do sol se apagavam os seus, ou os escondia do afã da quotidianidade em apodrecer o riso do mal. Sim, sim. Não me equivoco. O riso do mal é a voz dos artistas. Dos sublimes. Dos imperecíveis. Como o bolor num pedaço de pão! A benfazeja quotidianidade não é raiz de nada. Não tem a febre da coragem. Da coragem de enfrentar a morte, procurando-a em cada espectáculo. Como ele fazia. Como fazem todos os grandes, poetas e loucos. Procuram a morte, acossam-na até que ela não possa mais, não se lhes resista mais e caia perante eles. É isso que procuram. Ou não sabe ler o que nos momentos em que se permitem um sorriso lhes aparece entre as rugas mais sinceras que lhes guardam a alma? Estou em crer que, mesmo quando era um zé-ninguém fantasmeando pelas ruas, se lho podia ver no levantar e pousar dos calcanhares no meio do mijo dos cães que farejam o lixo das cidades e dos campos onde ia procurar a lua. Mas quando subia às alturas, transformava-se. Era a magia no seu estado puro. Não tinha nem queria asas para voar. No dia em que se despenhasse penhasco abaixo seria para vencer. Seria chegado o dia da sua morte, da sua grande vitória, ansiada ao longo de tantos anos de trabalho. Morreu-nos. Comemorávamos o dia em que tinha chegado ao circo pela primeira vez. Em que era ainda e tão só um fedelho à procura do medo para lhe fazer frente. Conheceu o seu mestre nesse dia. Superou-o ontem.

Este conto faz parte do número 33 da Revista 365.

Andreia Moreira vive em Barcelona, onde está a terminar um mestrado em Educação Interdisciplinar das Artes.

A ilustração deste conto é de Anna Erre.