sábado, 21 de março de 2009

Pedro Santo

JACINTO
por Pedro Santo

Consta que é da praxe, que todos os super-heróis em potência, em determinada altura de suas vidas, são expostos a situações que espoletam a sua faceta de semideus dos oprimidos. Os exemplos factuais comprovam-no: o Homem-Aranha foi mordido por uma aranha numa aula de ciências, ou lá o que foi, o Hulk também se embrulhou com uns tubos de ensaio ou raios gama, e, o próprio Batman, ainda que apartado do contexto laboratorial, alombou com os seus pais a serem vindimados à sua frente ou chatice afim. Tudo isto para dizer que, com Jacinto, o nosso super-herói, não sendo possível registar com exactidão o momento de transformação numa entidade protagonista na eterna luta do bem contra o mal, é possível determinar uma série de momentos que convergiram nesse sentido. Ora bem, Jacinto, quando era garoto, foi demonstrando especial apetência para se cruzar com pessoas que, assim que se lhes informava que o nome de Jacinto era, lá está, Jacinto, retorquiam com um "ah, como um dos reis magos". Das primeiras vezes, Jacinto ainda sorria com o erro e corrigia as pessoas, "não, não, como um dos pastorinhos", mas à medida que uma pessoa cresce, a raiva vai-se tornando no sentimento mais presente e orientador. E com Jacinto foi igual.

Este conto continua na edição impressa do número 28 da Revista 365.

Pedro Santo é um gajo que acha que estas mini-biografias são redutoras para com a sua incomensurabilidade. Como precisava de pelo menos mais uma linha, e em protesto, acaba por não adiantar nada sobre si, a não ser que nasceu em Leiria, em 1980.

sexta-feira, 20 de março de 2009

é sexta-feira foge comigo

PEDRO MIGUEL
e o projecto é sexta-feira foge comigo


O farol from Região de Leiria on Vimeo.

Pedro Miguel colaborou no número 28 da Revista 365. Mais sobre é sexta-feira foge comigo aqui.

quinta-feira, 19 de março de 2009

Alexandre Andrade

SCENTS OF PROVENCE
por Alexandre Andrade

A bola embateu na outra bola no ponto certo, mas com o efeito errado, ou no ponto errado com o efeito certo. Rachel não pôde evitar um suspiro de frustração. Cada colisão era acompanhada por um som seco e previsível. Os tacos passaram de uma brusca mão derrotada para outra mão. Rachel não conhecia as regras do jogo, mas emitia opiniões com uma cadência quase feroz.

Havia meia hora que entrara naquele bar de Antibes, esforçando se por aparentar a calma principesca de quem já conheceu tudo o que na vida existe que valha a pena conhecer. Interessara se pela partida de bilhar, e agora, com a mão esquerda fechada em torno do copo que continha o resto tépido do seu diabolo grenadine, esforçava se por se integrar no grupo de jogadores, mas mantendo as distâncias; ou então, cultivar um módico de distanciamento sem descurar o apetite pela socialização. Tanto uma como a outra estratégia lhe pareciam boas. Um rapaz muito moreno, dono de um fascinante par de olhos verde azeitona, perguntou a Rachel se queria jogar. Não, Rachel não jogava. O seu reflexo no vidro que dava para a rua mostrou um rosto sufocado pela gratidão.

Este conto continua na edição impressa do número 28 da Revista 365.

Alexandre Andrade nasceu em 1971 em Lisboa, onde reside. É professor na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. Tem 2 romances e 2 livros de contos publicados. É autor deste blogue.



As Não-Metamorfoses
(Errata, 2004)



Aqui Vem o Sol
(Quasi, 2005)

quarta-feira, 18 de março de 2009

Sete

RUI MANUEL AMARAL
e o projecto Sete


Filme de promoção do projecto Sete. Sete é um projecto vídeo de Francisco Costa e Rui Manuel Amaral, com textos deste último e locução de António Paulo Silva, concebido para o evento “Um Café ao Vivo”, a ter lugar no dia 21 de Março de 2009, no espaço Breyner 85, no Porto, pelas 21h00.

Rui Manuel Amaral é um dos autores publicados no número 28 da Revista 365.

domingo, 15 de março de 2009

Marcelo Moutinho

ROSA NOTURNA
por Marcelo Moutinho

Teresa tinha um pênis de vinte e dois centímetros, contados na régua. O atributo lhe rendia fama nos arredores da praça Paris, onde trabalhava de terça a domingo, das onze às cinco, quarenta reais por uma gozada, sem beijo na boca. “Beijar, nem por cem. É só para namorado.”

Os quarenta (e mais quarenta e mais quarenta e mais quarenta) ajudavam a pagar as despesas do apartamento da rua Cândido Mendes, dividido com duas amigas. Era ali que Teresa dormia, depilava as pernas, o sovaco e o rosto, tonificava os glúteos com os exercícios da revista de ginástica, aplicava em ampolas de hormônio as futuras curvas de mulher. Era ali que, enfim, abrigava-se durante o invisível do dia, nas horas de inexistência, antes de virar purpurina sublime e esparsa numa calçada de Glória.

Nas dimensões apertadas do apartamento, ela se amontoava às próprias coisas, às amigas e aos objetos das amigas, espalhados pelos dois cômodos. A topografia das caixas de papelão, dos móveis atravancados, dos colchões no colchão, da geladeira no meio da sala, dos poucos armários para muitas roupas, era como um raio X invertido da própria Teresa: desordem.

Este conto continua na edição impressa do número 28 da Revista 365.

Marcelo Moutinho nasceu em Madureira, subúrbio do Rio de Janeiro, no dia 22 de Junho de 1972. É jornalista e escritor. Tem publicados os volumes «Memória dos barcos» (7Letras, 2001) e «Somos todos iguais nesta noite» (Rocco, 2006). É autor deste blogue.



Memória dos Barcos
(7Letras, 2001)



Somos Todos Iguais Nesta Noite
(Rocco, 2oo6)

sábado, 14 de março de 2009

Elisabete Patrícia Andrade

O MEU ROSTO TERMINA ONDE O TEU COMEÇA
por Elisabete Patrícia Andrade

Tem 13 anos. Todas as noites se despe em frente do espelho. Executa este ritual sem procurar perceber que necessidade urge. Com a mão procura prazer, busca pontos no corpo que possam ser estimulados numa precipitação urgente para o orgasmo. Gosta de contemplar o rosto a abrir-se numa emoção de prazer enquanto uma luz lhe passa sobre os olhos. Masturba-se devagar, descobrindo o seu corpo milímetro a milímetro. Quando se vem nascem-lhe asas, os dedos lambuzados e felizes entre as pernas. Depois seca as lágrimas e imobiliza-se um instante diante do espelho, observa longamente o duplo rasgado pelo reflexo da lua. Fica fascinada com as transformações rápidas que o corpo sofre, aprecia particularmente a saliência dos seios. O corpo retoma o seu movimento natural, lentamente, e ela treme um pouco à contemplação do reflexo que o espelho devolve. Compreende cada vez menos a asfixia que oprime.

Este conto continua na edição impressa do número 28 da Revista 365.

Elisabete Patrícia estudou letras na Universidade Clássica de Lisboa. Reside presentemente no Reino Unido. Gosta de arte, de filosofia, de coleccionar livros e memórias. Elege o humor negro.

sexta-feira, 13 de março de 2009

Miguel Marques

CONFISSÃO À PAREDE
por Miguel Marques

Hoje está atrasada. Os malvados nunca vêm à tabela. Se calhar perdeu o das nove e teve de esperar pelo das dez menos um quarto. Quando não vem, telefona a avisar. Hoje ainda não ligou, portanto deve vir. Deus queira que não tenha acontecido nada. Já tinham dado nas notícias. Eles dão sempre. Ainda antes de ontem caiu uma catenária e morreram não sei quantas pessoas. O comboio descarrilou e apareceu o chefe da estação a falar. Esse não morreu. Os malvados vêm sempre com atraso. Acho que foi um rápido. A sorte foi que iam poucos passageiros, mas, mesmo assim, ainda morreram uns quantos. Deve ter-se atrasado. Se calhar ligou e não dei por nada. O mais certo é ter-se atrasado. Nunca se esquece. Nove e meia, o mais tardar, telefona. No outro dia trouxe-me um aquecedor eléctrico, daqueles que se ligam à corrente, porque diz que faz mal acender a braseira em casa, mas não me habituo a ele. Como não tenho as brasas, ponho a manta nos joelhos ou aqueço os pés com o saco de água quente. Nesta altura, as noites são tão frias que me enregelam as mãos e a barriga das pernas. Uso meias de lã mas o frio perpassa a roupa. Perpassa tudo, este frio.

Este conto continua na edição impressa do número 28 da Revista 365.

Miguel Marques nasceu em Lisboa em 1978, cursou Psicologia derivado a um erro de preenchimento dos impressos e encontra-se, actualmente, empregado a título precário num projecto de intervenção social. Falhou uma brilhante carreira política. Entrementes, foi forcado em Barrancos, seringueiro na Amazónia, bate-chapas em Moscavide, traficante de armas na Rodésia e guia de excursões entre Tânger e Gilbraltar. Tem contos publicados nas antologias Revista 365 – Os Primeiros Anos (CoolBooks, 2004) e em duas colectâneas Jovens Escritores (101 Noites, 2005 e 2006). É autor deste blogue.

quarta-feira, 11 de março de 2009

Luís Graça

A MULHER QUE SOFRIA MUITO COM AS RECORDAÇÕES MUSICAIS
por Luís Graça

Tudo lhe doía.

Desde “There will never be another you” (Art Pepper, 6 minutos e 9 de sexo oral feito por um ex-namorado que emigrou para a China comunista) até “The flight of the bumble-bee”, de Rimsky-Korsakov, pela voz do violino de Nigel Kennedy (um antigo colega de Faculdade que a sodomizou numa noite de temporal, para depois se ir gabar do feito para o Cais do Sodré, no “British Bar”).

A sua vida era um vendaval de desilusões amorosas, sempre acompanhadas de recordações musicais que funcionavam como guarnições indigestas para um “à la carte” do sofrimento afectivo. Pobre coração ávido de melodia!

A virgindade foi-se num fim de tarde esquisito, o céu plúmbeo de indecisões micro-climáticas. Os passarinhos desconfiados dos reformados que lhes atiravam com pão, os cães de dentes arreganhados para as crianças que brincavam à volta do coreto. A banda tocava a trilha sonora de “A golpada”, ela e Joaquim escondidos num recanto fétido, (mal) frequentado por ratazanas mafiosas que dominavam a zona. Não teve tempo para pensar. Joaquim agarrou-lhe os ombros com manápulas férreas de erecção acumulada, atirou-a contra a parede do coreto e a natureza seguiu o seu curso. Não foi violação porque ela estava demasiado entontecida para manifestar de forma expressa a sua desilusão com Joaquim. Em vez de 24 rosas, 20 centímetros. Ao invés de “amor, quero entrar em ti”, lá vai alho.

Este conto continua na edição impressa do número 28 da Revista 365.

Luís Graça é jornalista e escritor. Tem publicado «15 Desatinónimos para Fernando Pessoa», «De Boas Erecções está o Inferno Cheio» e «A Mulher que Fazia Recados às Putas e mais contos perversos», de onde retirámos «A mulher que sofria muito com as recordações musicais», que publicamos neste número.



A Mulher que Fazia Recados às Putas
e mais contos perversos
(Lewisgrace, 2007)

segunda-feira, 9 de março de 2009

Rui Manuel Amaral

HISTÓRIA DO DITO CUJO
por Rui Manuel Amaral

Se eu quisesse, podia contar muitas histórias sobre o dito cujo. Mas basta esta, a primeira que me vem à cabeça. Um belo dia, após uma bela noite de sono, o dito cujo abriu os olhos, levantou-se da cama, dirigiu-se ainda meio ensonado ao quarto de banho, olhou para o espelho e, oh!, fez uma careta terrível! Caramba, a terrível careta que ele fez! E depois disse: “Xanto Deux, o gue agontexeu à minha gara? Parexo o Gregor Xamxa.” O que significa: “Santo Deus, o que aconteceu à minha cara? Pareço o Gregor Samsa”, mas ele pronunciava mal as palavras, por causa daquilo que acontecera à sua cara durante a noite. E é tudo.

Esta é uma das microficções da série Cinco Histórias Nocuturnas, de Rui Manuel Amaral, que publicámos no número 28 da Revista 365.

Rui Manuel Amaral nasceu no Porto, em 1973, cidade onde vive. É coordenador literário da revista aguasfurtadas. É autor de «Caravana», editado pela Angelus Novus. É autor deste blogue.



«Caravana», de Rui Manuel Amaral, no «Ler+, Ler Melhor»


Um trailer, do livro «Caravana»

sexta-feira, 6 de março de 2009

Ana Queiroz

OS DOIS CARAS DE CAVALO
por Ana Queiroz

As minhas pernas assemelhavam-se, fustigadas e pesadas, quase em papa, às dos cavalos que corriam à minha frente. Eram os segundos invasores em pouco tempo, admitindo que me falaram de coisas reais e que estive longe de línguas fantasiosas, errantes, etc, etc, daquelas espalhadas pelos cantos escuros da Cidade, onde normalmente parava... Mas esta parte não me interessa assim tanto; ou melhor, tento perceber agora o que me interessa e o que vou pôr de parte (1- não me posso esquecer do nevoeiro)... Vou começar de novo. A tremura que sentia no corpo era parecida com a dos cavalos que chegavam mas só podia justapô-las com razão se os animais fossem mais velhos ou se estivessem tão cansados como eu. Por algum motivo, olhava mais para os cavalos que para as silhuetas que os montavam; e eram muitos, apesar de parecidos, e de um conjunto de massas muito juntas, eram às centenas.

Este conto continua na edição impressa do número 28 da Revista 365.

Ana Queiroz tem 21 anos, frequenta o último ano do curso de Cinema na Escola Superior de Teatro e Cinema. Foi seleccionada entre os Jovens Criadores de 2008 na categoria de Literatura e, no futuro, deseja trabalhar nessa área, bem como na de Cinema.